quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Festival promove intercâmbio com mestras da cultura popular

Jovens do grupo Pessoa Comum e as mestras do
Samba de Lata do quilombo de Tijuaçu
“Meniná dos olhos pretos / Olhos pretos matador / Vou dar queixa ao delegado / Que teus olhos me matou”. 
“Eu sambei, sambei/ Vim parar aqui / Viva todos quilombola / E também o Rei Zumbi” 
Na comunidade de Bom Juá, em Salvador, no dia 27 de julho, as cantigas de roda e o Samba de Lata deram o tom do encontro entre duas expressões vivas e vibrantes da cultura tradicional popular e jovens participantes da Rede Ser-Tão Brasil,. 
As mestras Aninha, da cidade de Lafaiete Coutinho, e Detinha, do Quilombo Tijuaçu, distrito de Senhor do Bonfim estão em Salvador preparando, sob a direção de Maria Eugenia Milet, supervisora geral e diretora artística do CRIA, o espetáculo O Vento Forte. A montagem terá apresentação única para convidados na noite de abertura do Festival, no dia 12 de agosto, no Teatro SESC/SENAC Pelourinho. 


Enquanto ensaiam, outros "encontros" acontecem. Depois de Bom Juá, foi a vez da equipe do CRIA no dia seguinte, e marcou o início das atividades de formação para orientadores da instituição. Para Maria Eugenia Milet, supervisora geral e diretora artística do CRIA, “o intercâmbio é um momento de encontro, de ternura com o fundo da nossa alma brasileira indígena e negra. É a continuidade de uma formação que existe há anos. As Mestras nos ensinam valores essenciais para nosso trabalho. Colocamos nossa alma à frente e nossa criança a seguir”.

Para a arte-educadora Carla Lopes, este encontro é também uma oportunidade para as mestras serem escutadas. “Para mim é uma sensação de prazer e de acordar uma lembrança do sentir. Histórias que são delas e que são minhas também. Consegui me ver nessas mestras, olhar mais para as pessoas, enfim, respeitar a vida”.

O estagiário de produção do CRIA, Nei Lima, foi fundo nas suas raízes interioranas. “A sensação foi de encontro com minha infância em Brumado, onde nasci. Me lembrei das festas do padroeiro, o leilão de objetos e comidas em frente à Igreja Matriz. As mestras nos mostram um mundo marcado pela festa e pela repetição de rituais cotidianos. Uma relação pura com o mundo através da afetividade, que me deu uma consciência nova do lugar onde estou”.


A oficina foi proposta pelo CRIA para aproximar dos jovens a cultura das mestras. “A gente só tem acesso a este tipo de manifestação quando vai ao interior”, afirma Romilson Freire, articulador da Rede Ser-Tão Brasil.


“Pra gente é importante retomar a relação com a nossa história, com a linguagem cultural da cantiga de roda e do samba de lata. Como é difícil levar o grupo para o interior, trouxemos elas para cá”, Iaracira Nascimento, coordenadora do grupo cultural Art´kzumba, que atua nas comunidades do Marotinho, Bom Juá e Fazenda Grande do Retiro. O Grupo promove atividades de resgate da identidade étnica.A associação trabalha ainda temas como a cultura da infância, e promove oficinas de teatro, hip hop, poesia, grafite, estética afro e break, o carro-chefe das atividades.


A vivência também serviu para aglutinar representantes de comunidades da Rede em Salvador, como Cosme de Farias, Centro Antigo, Arenoso, São Lázaro e Periperi. “Esta é uma oportunidade de estar em outras comunidades e ter contato com nossos mestres”, diz Fernanda Silva, do Grupo Lua Nova/São Lázaro e jovem atriz do CRIA.

O jovem dinamizador cultural da Rede em Paripe, Ronald Assis, também concorda. “A Rede Ser-Tão é importante para o resgate dos nossos mestres. A gente relembra o que foi perdido, o que não é falado na escola nem pela mídia. Entendemos que nós também seremos um dia ancestrais”.

Valdelice da Silva, mais conhecida como Detinha, 51 anos, trouxe de Tijuaçu o Samba da Lata, tradição mantida pela família desde os mais antigos. A manifestação nasceu entre 1930 e 1932, quando ocorreu um dos períodos de seca mais severos da região e a fome provocou muitas mortes.

Época em que se matava a sede bebendo água de cacimba e andava-se muitas “tarefas” carregando lata d´água na cabeça. Entre uma caminhada e uma pausa para o descanso embaixo dos umbuzeiros, o samba de lata foi surgindo.

Detinha tinha 5 anos quando começou a tocar. Hoje, ela e o grupo formado por 14 mulheres, 5 homens e 13 crianças se apresentam nas festas da cidade, com traje branco e pés descalços, fazendo daquela história de sofrimento uma celebração à vida. Segundo ela, o samba de lata só existe aqui na Bahia.

A comunidade está tentando o reconhecimento da manifestação como patrimônio cultural do estado, como já é com o samba de roda. Os jovens ficaram sabendo a história de Tijuaçu, que significa Lagarto Grande, quilombo criado por uma escrava que fugiu de Salvador.

Outras duas seguiram o exemplo e criaram os quilombos de Missão do Sahy e Laje dos Negros naquela mesma região. “Muita gente morreu de fome naquela época que o samba de lata surgiu. O pessoal não tinha dinheiro e trocava a tarefa - hoje hectare - por roupas e comida. Eu passei muita fome e usei roupa de saco. Bebia água suja com sapinhos dentro. Antes chorava quando contava esta história de sofrimento. Hoje, não mais!”. E o samba de lata ajudou a virar esta página.

Aos 57 anos, Ana Gervazio Umburana, a Aninha, entoa cantigas de samba de roda e conta histórias desde os 12, mesma época em que trabalhava na roça com a família, em Lafaiete Coutinho, então Três Morros. “Aprendi a tocar com meu pai e ensinei também os meus filhos a tocar e a cantar as cantigas de roda”.

Ela teve sete filhos. Um deles faleceu há sete meses. A cidade tinha muita fartura de mandioca e café, comia o que se plantava e não tinha a violência de hoje em dia. “Quando virou município, esqueceram as tradições e desmataram a vegetação. O lugar é acolhedor, mas o povo não abraça o desenvolvimento como deveria”.

Para ela, a salvação está na juventude. Por isso, ela dá muitos conselhos e continuam fazendo rodas de conversa e história, inclusive para as crianças da escola onde trabalha. A atriz do CRIA Nanci Rocha, de 64 anos, cuja vitalidade e juventude estão presentes a todo momento, também dá o seu exemplo : “As crianças de hoje não conhecem as histórias e brincadeiras de roda, mas eu sempre conto para os meus netos”.